quinta-feira, 9 de maio de 2013

A produção de feminilidade no Fisiculturismo



As práticas corporais e esportivas têm se mostrado, há muito tempo, como um espaço no qual se pode identificar a expressão de diferentes feminilidades. Não é recente a aparição de mulheres cujos corpos e subjetividades tencionam representações culturalmente construídas para o feminino, o que não implica afirmar a inexistência de árduas demandas em busca de reconhecimento e aceitação.

Dentre as inúmeras práticas corporais e esportivas possíveis de observar tal afirmação, destaca-se o fisiculturismo, fundamentalmente, pela presença absolutamente visível das marcas que a potencialização muscular inscreve nos corpos das atletas e praticantes.

O fisiculturismo é uma modalidade esportiva que se sustenta no volume, na definição e na simetria muscular. A vertente feminina é constituída de quatro modalidades produzidas a partir de diferentes níveis de potencialização muscular. São denominadas, respectivamente, pela Federação Brasileira de Musculação (NABBA Brasil) e pela Confederação Brasileira de Culturismo e Musculação (CBCM) como physique ou culturismo, figure ou body fitness, fitness ou miss fitness e toned figure ou wellness.

A potencialização muscular e a produção de feminilidades mantêm uma intrincada relação que constitui, atravessa e marca de diferentes modos a construção da vertente feminina no fisiculturismo. Junto a essa problemática, desponta uma relação linear que envolve o volume muscular e as marcas de uma feminilidade normalizada inscritas nos corpos das mulheres. Essa vinculação produziu e constantemente faz renovar a seguinte questão: “quão musculosa a mulher pode estar e ainda ser feminina?”.  Essa temática adquire importância quando examinamos as históricas relações produzidas entre os homens, as mulheres e os esportes nos quais, grosso modo, ao corpo feminino excessivamente transformado pelo exercício físico e pelo treinamento contínuo são atribuídas características viris que não apenas questionam a beleza e a feminilidade da mulher, mas também colocam em dúvida a autenticidade do seu sexo.

Esse discurso sugere que as atletas de fisiculturismo colocavam em dúvida uma ‘imagem ideal de ser mulher’, ao mesmo tempo que desestabilizavam um terreno criado e mantido sob o domínio masculino, cuja existência justificasse pela anatomia do corpo e do sexo, atestando, desse modo, a superioridade dos homens em relação a elas. Os volumosos corpos de algumas dessas mulheres desassossegavam e, de certo modo, fissuravam representações dominantes de feminilidade. Dessas tensas relações começou ganhar protagonismo o discurso da interdição à potencialização muscular feminina ilimitada, conforme podemos identificar neste excerto: “Todas as mulheres que competem devem reduzir a sua massa muscular em 20% do estágio individual atual, além de uma busca pelo máximo de feminilidade possível, sob pena de perda de pontos na classificação geral em campeonatos”.

Ao potencializarem ao máximo os seus músculos, algumas mulheres infringem as normas e, nessa lógica, produzem-se como sujeitos desviantes, cujos corpos volumosos perturbam e ameaçam as representações de feminilidade que estão no centro da cultura e também do próprio fisiculturismo. Quando outras feminilidades passam a ser admitidas e posicionadas como sujeitos, mais do que colocar em suspeição a representação primeira, produz-se uma mobilização que desacomoda todo um sistema de valores e aquilo que passa a ser questionado tem relação com a “noção de cultura, ciência, arte, ética, estética, educação, que, associada a esta identidade, vem usufruindo, ao longo dos tempos, de um modo praticamente inabalável, a posição privilegiada em torno da qual tudo gravita”.

Uma outra prática relacionada ao reforço ou à preservação de uma imagem feminina está relacionada ao uso de cirurgias estéticas e à utilização de próteses de silicone, o que pode ser identificada em todas as modalidades do fisiculturismo. Os efeitos dos intensos treinamentos, das dietas extremamente restritas e do uso de substâncias químicas para potencializar os músculos reduzem a gordura que dá forma às mamas, levando as mulheres a aderirem aos seios artificiais. Também não é possível desconsiderar que os seios femininos volumosos foram e são discursivamente posicionados em nossa sociedade como um dos atributos centrais da representação da beleza e da sensualidade femininas. Muitas atletas acabam sendo interpeladas por esses discursos e recorrem às cirurgias estéticas para recuperar uma das características corporais centrais para a mulher que faz ruir certas suspeições acerca do seu corpo, marcando nele os códigos convencionais de um jeito feminino de ser.

Tal intervenção parece relacionar-se com o recorrente temor de que a mulher rompa algumas barreiras que delimitam as diferenças culturalmente construídas para cada sexo, o que parece indicar como imperiosa a sua feminização, caso contrário, diz o discurso dominante, ela estará se masculinizando. Feminizar a mulher é, sobretudo, feminizar a sua aparência e o uso do seu corpo. Feminizar é, também, adornar o corpo, inclusive com tatuagens em que as atletas desenham na pele figuras tribais, flores, borboletas e pequenas inscrições. No fisiculturismo é possível perceber que elas tatuam os corpos em lugares em que não há grandes grupos musculares e em pequenos espaços que ficam escondidos sob o biquíni ou maiô: lateral dos seios, pescoço, lateral dos tornozelos ou do quadril, região lombar, entre outros. Esses espaços são escolhidos por não oferecerem riscos às avaliações da sua arquitetura corporal, uma vez que, segundo as normas da International Federation of Body Building, a tatuagem é tomada como um defeito corporal. No entanto, para as competições, elas buscam cobrir o máximo possível esses desenhos para que não ameacem a avaliação de seus contornos musculares. Enfim, práticas de embelezamento como as detalhadas aqui indicam que, em algumas modalidades esportivas, as mulheres podem participar, entretanto é recomendável que não deixem de lado a beleza e a graciosidade, atributos colados a uma suposta ‘essência feminina’. No caso do fisiculturismo feminino, esses atributos assumem uma dimensão ainda não vista em outras modalidades esportivas e acentuá-los constituiu-se parte da produção dos corpos para fazerem o espetáculo.


Postado por: Thais Cristina Soares Silva

Referências:
Jaeger, AA ET AL. O músculo estraga a mulher? A produção de feminilidades no  Fisiculturismo Estudos Feministas, Florianópolis, 19(3): 955-975, setembro-dezembro/2011.

Botelho, FM, Corpo, risco e consumo: uma etnografia das atletas de fisiculturismo. Revista habitus - IFCS/UFRJ v. 7, n. 1 (2009) 


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