As práticas corporais e
esportivas têm se mostrado, há muito tempo, como um espaço no qual se pode
identificar a expressão de diferentes feminilidades. Não é recente a aparição
de mulheres cujos corpos e subjetividades tencionam representações
culturalmente construídas para o feminino, o que não implica afirmar a
inexistência de árduas demandas em busca de reconhecimento e aceitação.
Dentre as inúmeras práticas
corporais e esportivas possíveis de observar tal afirmação, destaca-se o
fisiculturismo, fundamentalmente, pela presença absolutamente visível das
marcas que a potencialização muscular inscreve nos corpos das atletas e
praticantes.
O fisiculturismo é uma
modalidade esportiva que se sustenta no volume, na definição e na simetria
muscular. A vertente feminina é constituída de quatro modalidades produzidas a
partir de diferentes níveis de potencialização muscular. São denominadas,
respectivamente, pela Federação Brasileira de Musculação (NABBA Brasil) e pela
Confederação Brasileira de Culturismo e Musculação (CBCM) como physique ou
culturismo, figure ou body fitness, fitness ou miss fitness e toned figure ou
wellness.
A potencialização muscular e
a produção de feminilidades mantêm uma intrincada relação que constitui,
atravessa e marca de diferentes modos a construção da vertente feminina no
fisiculturismo. Junto a essa problemática, desponta uma relação linear que
envolve o volume muscular e as marcas de uma feminilidade normalizada inscritas
nos corpos das mulheres. Essa vinculação produziu e constantemente faz renovar
a seguinte questão: “quão musculosa a mulher pode estar e ainda ser
feminina?”. Essa temática adquire
importância quando examinamos as históricas relações produzidas entre os
homens, as mulheres e os esportes nos quais, grosso modo, ao corpo feminino
excessivamente transformado pelo exercício físico e pelo treinamento contínuo
são atribuídas características viris que não apenas questionam a beleza e a feminilidade
da mulher, mas também colocam em dúvida a autenticidade do seu sexo.
Esse discurso sugere que as
atletas de fisiculturismo colocavam em dúvida uma ‘imagem ideal de ser mulher’,
ao mesmo tempo que desestabilizavam um terreno criado e mantido sob o domínio
masculino, cuja existência justificasse pela anatomia do corpo e do sexo,
atestando, desse modo, a superioridade dos homens em relação a elas. Os
volumosos corpos de algumas dessas mulheres desassossegavam e, de certo modo,
fissuravam representações dominantes de feminilidade. Dessas tensas relações
começou ganhar protagonismo o discurso da interdição à potencialização muscular
feminina ilimitada, conforme podemos identificar neste excerto: “Todas as
mulheres que competem devem reduzir a sua massa muscular em 20% do estágio
individual atual, além de uma busca pelo máximo de feminilidade possível, sob
pena de perda de pontos na classificação geral em campeonatos”.
Ao potencializarem ao máximo
os seus músculos, algumas mulheres infringem as normas e, nessa lógica,
produzem-se como sujeitos desviantes, cujos corpos volumosos perturbam e
ameaçam as representações de feminilidade que estão no centro da cultura e
também do próprio fisiculturismo. Quando outras feminilidades passam a ser
admitidas e posicionadas como sujeitos, mais do que colocar em suspeição a
representação primeira, produz-se uma mobilização que desacomoda todo um
sistema de valores e aquilo que passa a ser questionado tem relação com a
“noção de cultura, ciência, arte, ética, estética, educação, que, associada a
esta identidade, vem usufruindo, ao longo dos tempos, de um modo praticamente
inabalável, a posição privilegiada em torno da qual tudo gravita”.
Uma outra prática
relacionada ao reforço ou à preservação de uma imagem feminina está relacionada
ao uso de cirurgias estéticas e à utilização de próteses de silicone, o que
pode ser identificada em todas as modalidades do fisiculturismo. Os efeitos dos
intensos treinamentos, das dietas extremamente restritas e do uso de
substâncias químicas para potencializar os músculos reduzem a gordura que dá
forma às mamas, levando as mulheres a aderirem aos seios artificiais. Também
não é possível desconsiderar que os seios femininos volumosos foram e são
discursivamente posicionados em nossa sociedade como um dos atributos centrais
da representação da beleza e da sensualidade femininas. Muitas atletas acabam
sendo interpeladas por esses discursos e recorrem às cirurgias estéticas para
recuperar uma das características corporais centrais para a mulher que faz ruir
certas suspeições acerca do seu corpo, marcando nele os códigos convencionais
de um jeito feminino de ser.
Tal intervenção parece
relacionar-se com o recorrente temor de que a mulher rompa algumas barreiras
que delimitam as diferenças culturalmente construídas para cada sexo, o que
parece indicar como imperiosa a sua feminização, caso contrário, diz o discurso
dominante, ela estará se masculinizando. Feminizar a mulher é, sobretudo,
feminizar a sua aparência e o uso do seu corpo. Feminizar é, também, adornar o
corpo, inclusive com tatuagens em que as atletas desenham na pele figuras tribais,
flores, borboletas e pequenas inscrições. No fisiculturismo é possível perceber
que elas tatuam os corpos em lugares em que não há grandes grupos musculares e
em pequenos espaços que ficam escondidos sob o biquíni ou maiô: lateral dos
seios, pescoço, lateral dos tornozelos ou do quadril, região lombar, entre
outros. Esses espaços são escolhidos por não oferecerem riscos às avaliações da
sua arquitetura corporal, uma vez que, segundo as normas da International
Federation of Body Building, a tatuagem é tomada como um defeito corporal. No
entanto, para as competições, elas buscam cobrir o máximo possível esses desenhos
para que não ameacem a avaliação de seus contornos musculares. Enfim, práticas
de embelezamento como as detalhadas aqui indicam que, em algumas modalidades esportivas,
as mulheres podem participar, entretanto é recomendável que não deixem de lado
a beleza e a graciosidade, atributos colados a uma suposta ‘essência feminina’.
No caso do fisiculturismo feminino, esses atributos assumem uma dimensão ainda
não vista em outras modalidades esportivas e acentuá-los constituiu-se parte da
produção dos corpos para fazerem o espetáculo.
Postado por: Thais Cristina
Soares Silva
Referências:
Jaeger, AA ET AL. O músculo
estraga a mulher? A produção de feminilidades no Fisiculturismo Estudos Feministas,
Florianópolis, 19(3): 955-975, setembro-dezembro/2011.
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